Entrevista com a pesquisadora Elizabeth Rangel. Chefe do Laboratório Interdisciplinar em Vigilância Entomológica do IOC do Instituto Oswaldo Cruz

Elizabeth Rangel

 

1. Você é uma das principais pesquisadoras sobre a transmissão da leishmaniose e seus vetores. Apesar de poucas vezes escrever explicitamente sobre clima, as relações ecológicas e sociais entre a leishmaniose e o clima são evidentes nesses trabalhos. Que papel as mudanças climáticas podem ter no espalhamento das áreas de transmissão das leishmanioses?

Já fizemos estudos com vetores de leishmaniose tegumentar (LTA) e leishmaniose visceral (LVA) no Brasil, com vistas à cenários futuros face às mudanças climáticas. Para os vetores estudados, observamos que, tanto em cenários otimistas como nos pessimistas, considerando o aquecimento global, haverão áreas de adequabilidade climática o que acarretará na expansão desses vetores, consequentemente das leishmanioses, em 2050. 

Entretanto, com relação ao principal vetor da LVA, Lutzomyia longipalpis, essa expansão para o Sul do Brasil já está sendo observada, no estado do Rio Grande do Sul.

Vale destacar, na realização de nossos estudos, a oportunidade de parceria intrainstitucional com Christovan Barcellos e equipe, do ICICT, bem como parcerias internacionais, a mais recente com Global Health Resilience, Earth Sciences Department, Barcelona Supercomputing Center, Barcelona, Spain.

Ainda, todos os resultados obtidos em nossas pesquisas sobre Impactos das Mudanças Climáticas nas Leishmanioses são publicados em forma de relatórios junto ao INCT Mudanças Climáticas, onde estou na coordenação do Subcomponente Saúde.
 

2. Como você poderia resumir em linguagem simples (para leigos) os principais resultados da sua pesquisa?
Os mosquito-palha (os flebotomíneos), transmissores das leishmanioses tegumentar e visceral vão se adaptar às ondas de calor, cada vez mais frequentes, e com isso vamos ter no Brasil a expansão das leishmanioses para um maior número de cidades. O mosquito palha tem a capacidade de viver em ambientes modificados por influência de altas temperaturas ou alterações realizadas pelo homem.

 

3. O que há de novo nas suas pesquisas sobre clima e vetores da leishmaniose em relação ao conhecimento tradicional sobre a transmissão de leishmaniose? Novos métodos e técnicas?
Do meu ponto de vista, as novas metodologias aplicadas nos estudos com os vetores das leishmanioses, reforçam e respondem algumas hipóteses levantadas anteriormente. Sabemos que os vetores estão se adaptando e ocupando outros espaços, até mesmo ambiente urbano, em associação com diferentes reservatórios e parasitas. Nossos estudos utilizando metodologias como o Sistema de Informação Geográfica, estudos de Modelos de Nichos Ecológicos ( ENFA - Ecological-Niche Factor Analysis, Maxent – Maximum Entropy  baseados em variáveis climáticas e ambientais correlacionadas com temperatura, precipitação, altitude e Índice de Vegetação Aprimorado sempre atualizados frente aos relatórios emitidos pelo IPCC) , somados à análise de vulnerabilidade, corroboram com hipóteses anteriores, no sentido de demonstrar quais fatores e áreas de adequabilidade climática, contribuem para maior densidade de vetores importantes e, consequentemente, maior número de casos humanos da doença.

 

4. A Fiocruz tem uma trajetória secular de estudos sobre a relação entre clima e saúde, que começa pelo próprio Oswaldo Cruz. No momento atual, surgiram novos desafios e também novas tecnologias que podem ajudar na produção de conhecimento. Como a tradição de estudos sobre 'ecologia de vetores' na Fiocruz pode ser recuperada sobre novas bases teóricas e metodológicas?
Acredito que estudos sobre “ecologia de vetores” devem ser incentivados com recursos financeiros para os trabalhos de campo; o grande desafio que se coloca é exatamente conhecer os determinantes socioambientais de ocorrência das doenças de transmissão vetorial. Um planejamento integrado que envolva as metodologias tradicionais de capturas de vetores e seu diagnóstico devem estar alinhadas com práticas de Educação e Saúde, bem como aquelas de Tecnologias Sociais. Qualquer planejamento de ações de vigilância e controle, necessariamente deve ter a sociedade civil, ou seja, as comunidades que vivem em áreas endêmicas ou em áreas de risco de transmissão, áreas vulneráveis, como importante autores.
Aliás, nossa equipe já vem atuando neste contexto com a realização de oficinas, voltadas a diversos públicos, que incluem profissionais da saúde (gestores e técnicos municipais e estaduais) e as comunidades vulneráveis, utilizando como ferramentas atividades e vocabulário adaptados às realidades locais, e as temáticas em áreas de transmissão das leishmanioses. Procuramos sensibilizar os gestores com estas práticas, considerando o custo-benefício.

 

5. Como a instituição pode ser mobilizada para o enfrentamento da crise climática e sua repercussão na saúde?
A Fiocruz precisa mapear os laboratórios, nas suas diferentes Unidades Técnico-Científicas, que já estão trabalhando com Mudanças Climáticas e os Impactos na Saúde Humana, formar uma Rede de Colaboração, através de um projeto robusto. Há que se pensar, em um ciclo de palestras onde cada expert no assunto possa apresentar seus estudos e, assim, planejar a construção de um macro-projeto.

Acredito que na área de Educação, deve haver o incentivo para cursos temáticos de media ou curta duração, para os estudantes de pós-graduação. Eu coordeno uma disciplina da Pós-graduação em Biodiversidade e Saúde/IOC, de 134 horas, e tenho um módulo de 4 dias somente sobre Mudanças Climáticas e os Impactos nas Leishmanioses. Cursos online também podem ser oferecidos à sociedade em geral, através do Portal FIOCRUZ. Disciplina sobre esta temática deve ser oferecida aos Programa de Pós-graduação, especialmente voltados para profissionais do serviço.

 

6. O sistema de saúde está preparado para as mudanças climáticas? Como a pesquisa em entomologia pode ajudar o SUS?
Não, definitivamente, não.
Importante é a popularização da ciência no SUS.  De nada adiantam nossos estudos se as informações/dados gerados não chegam na ponta, no serviço.

Por mais de uma vez, onde tive oportunidade de falar sobre o tema em reuniões com o Ministério da Saúde, já deixei bem claro que qualquer planejamento para controle de doenças de transmissão vetorial deve estar alinhado com as evidências sobre os impactos do aquecimento global na fisiologia, ecologia de vetores, bem como na relação parasita-vetor. Já existem estudos e relatórios que nos mostram essa correlação. Contudo, mais estudos são necessários para a abrangência de um país de dimensões continentais, considerando as diversas doenças de transmissão vetorial. Ainda existem lacunas no conhecimento sobre a ecologia dos vetores nas diversas regiões geográficas, especialmente na Amazônia. Uma vez, com dados bem embasados, pode-se identificar municípios vulneráveis e dar, assim, subsídios para o Ministério da Saúde entender a eco-epidemiologia de um determinado agravo e, assim, trabalhar com a prevenção e promoção da saúde.
Também, os estudos sobre os vetores de doenças em associação com a ocorrência de casos humanos, ambiente e dados climáticos, poderão auxiliar nos estudos de nichos ecológicos, avaliando seu status atual e a projeção de cenários futuros.
Voltando ao SUS, muitas são as especialidades da Medicina que já têm mapeados os impactos das mudanças climáticas, especialmente o aquecimento global, na saúde humana, o que permite desenvolver processo de adaptação. No momento, não temos essas ações no SUS.

E vou mais além, se o Ministério da Saúde não “conversar” como o Ministério do Meio Ambiente e de Mudança do Clima, qualquer planejamento de vigilância, controle ou erradicação de doenças estará fadado ao fracasso.