Reportagem publicada originalmente no Amazônia Vox
A casa de Otávio da Costa, em Cametá (PA), tem um extenso quintal, cheio de árvores e com um tanque que esporadicamente é usado para criação de peixes. A convivência com a natureza costumava ser harmoniosa, até que, há alguns meses, ele e sua família foram afligidos por uma doença com a qual não tinham familiaridade. Tiveram febre alta, dor de cabeça, dor muscular, dentre outros sintomas. Sem saber o que podia ser, automedicaram-se, mas isso só fez piorar a situação. Ao procurar atendimento médico, descobriram a causa: era dengue.
A doença, característica de cidades, começou a atingir a zona rural do estado e pesquisadores acreditam que as mudanças climáticas e o desmatamento podem ser parte da explicação. Agora, cientistas, técnicos e agentes de saúde estão unindo imagens de drone, mapeamento em campo e conhecimento tradicional para entender o cenário local e tomar medidas de prevenção, não só para a dengue, como também para outros problemas.
A atuação faz parte do projeto Harmonize, que reúne uma equipe interdisciplinar de diversas instituições, com o objetivo de integrar dados climáticos, ambientais, socioeconômicos e de saúde para calibrar modelos de observação da Terra e analisar a transmissão de doenças em áreas sujeitas a mudanças climáticas.
O projeto tem atuado na região do Baixo Tocantins, no Pará, há três anos, com uma equipe composta por profissionais da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) Barcelona Supercomputing e Secretaria Estadual de Saúde do Pará (SESPA), com o apoio de órgãos locais de saúde e meio ambiente.
Fiscalização da dengue pelo céu, água e em terra
De acordo com Diego Xavier, pesquisador da Fiocruz, o principal objetivo do projeto é identificar como o comportamento climático está interferindo na saúde da localidade. "Temos levantado junto à população algumas questões e é quase unânime a resposta de que se percebe uma alteração, no regime do rio, no volume de chuvas e, nesse projeto, constatamos de forma mais regional o que já se vê num cenário global", explica ele, que também faz parte do Observatório de Clima e Saúde da Fundação.
Ouvindo a população tanto nas sedes urbanas quanto em quilombos ou áreas ribeirinhas, os pesquisadores conseguem perceber como as mudanças climáticas vêm sendo sentidas nos municípios de Mocajuba e Cametá. Adicionalmente, analisam como os vetores de doenças tropicais tem sido influenciados. "Observamos que lugares que antes praticamente não apresentavam dengue, em 2024 tiveram aumento de casos. Essa é uma doença que depende muito da alteração de mudança do ambiente para se ter os criadouros", contextualiza Xavier.
No Baixo Tocantins, as estatísticas são alarmantes. Em Cametá, os casos prováveis passaram de 435 em 2023 para 1.187 neste ano, de acordo com o Infodengue. Já em Mocajuba, município vizinho, o crescimento foi ainda maior proporcionalmente: cresceu 9x, saltando de 10 em 2023 a 90 neste ano.
Cametá:
Mocajuba:
No Harmonize, no entanto, esse levantamento não fica somente na teoria ou na coleta de depoimentos. Por um lado, durante uma expedição há uma equipe em campo, visitando casas com relatos de dengue para tentar identificar os possíveis criadouros e coletando larvas e mosquitos adultos, como foi o caso da residência de Otávio. Ali, perceberam que não somente o tanque de criação de peixes (cuja produção estava parada há um tempo) quanto também as folhas que ficam pelo chão do quintal acumulando água parada propícia para a proliferação do mosquito.
Em paralelo, outro grupo, do INPE, conduz sobrevoos de drone para fazer o sensoriamento remoto, para mapear de cima áreas que também possam estar contribuindo para a transmissão dessa doença. As imagens de drone são feitas a uma distância que preserva a identidade dos cidadãos, mas permite verificar onde há piscina, lagos, poças d'água ou acúmulo de pneus. "Podemos tentar localizar e mapear qualquer alteração na paisagem terrena usando imagem de drone. Quando voltamos para o INPE, basicamente recolhemos todas as imagens que fizemos e processamos para identificar se tem água, se é uma área urbana, dentre outros aspectos", descreve Sidnei Sant'Anna, tecnologista do INPE. Com a imagem gerada, também se extraem informações de solo e de vegetação, que podem ser válidas para diversos fins.
Para Ocidelma Barroso, coordenadora da Coordenação de Endemias de Mocajuba, o projeto tem o potencial de preencher uma lacuna importante para a prevenção de arboviroses, que são doenças virais transmitidas principalmente por mosquitos e carrapatos, dentre outros animais. "Os ACS [agentes comunitários de saúde] trabalham de casa em casa, vasculhando todos os imóveis, mas não conseguem acessar muitas residências porque as pessoas trabalham o dia todo e não conseguem abrir as portas para a fiscalização. Então, fica muito difícil prevenir 100%. Agora, com essas imagens de drone em mãos, conseguimos aumentar muito nosso alcance", acredita.
Degradação do meio ambiente contribui para impactos negativos
Os cientistas analisam como o meio ambiente tem influenciado nas doenças tropicais. Em Mocajuba, esses efeitos já são visíveis. Em passagem pela cidade em setembro deste ano, a equipe de reportagem do Amazônia Vox observou em diversos pontos que a vegetação tinha sido recém-queimada, à beira da estrada.
Já foram queimados 4 mil hectares no município nos nove primeiros meses deste ano, em comparação a 99 hectares queimados no ano passado inteiro, de acordo com o Monitor do Fogo do Mapbiomas.
Pontos vermelhos no mapa sinalizam locais onde houve queimada em 2024, em Mocajuba (PA). Captura de tela feita do Monitor do Fogo/Mapbiomas.
O prefeito da cidade, Cosme Macedo Pereira, reconhece que os desafios ambientais do município já são sentidos, ressaltando a seca sentida no rio Tocantins. "A cada ano que passa, a gente vê as águas baixando mais. Essa é uma preocupação muito grande para nossa região aqui", aponta.
Outra preocupação do prefeito é o lixão a céu aberto, um dos 130 do tipo espalhados pelo Pará (incluindo lixão e aterro controlado), segundo dados do Ministério do Meio Ambiente. Contudo, o gestor pondera sobre a dificuldade de angariar recursos para a adaptação e mitigação dos riscos. "O município de Mocajuba é um dos menores municípios do Baixo Tocantins, em número de habitantes e território também. E a nossa dificuldade é muito grande em trazer recursos para implementar serviços de ações positivas tanto na área ambiental quanto na área climática. Dependemos muito do Governo Federal e do Governo Estadual", declara.
Com todos esses desafios à frente, Pereira acredita que o trabalho do projeto Harmonize ajuda a elucidar quais os próximos passos que a gestão municipal deve colocar em prática para contornar os desafios de Mocajuba.
Dados contínuos, pela primeira vez
A engenheira sanitária e ambiental Franciana Valente Gaia é nascida e criada no Baixo Tocantins e, no seu Trabalho de Conclusão de Curso em 2022, fez um diagnóstico do saneamento básico na microrregião de Cametá (Abaetetuba, Baião, Mocajuba, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá e Oeiras do Pará).
Depois de formada, atuou no Departamento de Meio Ambiente, vinculado a Secretaria de Obras do município. Foi ali que teve o primeiro contato com o projeto Harmonize, que se interessou por seu trabalho e pesquisa. A ligação continua até hoje, sendo agora uma pesquisadora assistente do projeto. "Nunca imaginei que uma simples pesquisa mostrando a realidade da comunidade pudesse trazer efeitos para uma pesquisa de grandiosidade, em nível internacional", declara. Para ela, os resultados do Harmonize já são visíveis, em especial quanto à produção de dados contínuos, o que não se tinha antes.
Neste ano, o projeto instalou estações meteorológicas e hidrométricas, para previsão do tempo e monitoramento do nível dos rios, velocidade da água, pluviosidade e temperatura. "Dentro do projeto, já estou enxergando resultados como moradora também, porque eu lembro que no tempo da graduação não tínhamos uma base de dados ou uma série histórica", avalia Gaia.
Uma das estações fica no final da ponte da casa de João Paulo Oliveira, que vive na comunidade Merajuba, em Cametá, à margem do rio Tocantins. Ele acredita que essas novas informações podem ajudar a ter mais produtividade nas suas atividades de subsistência, tanto na pesca quanto na roça. Isso porque já houve vários casos em que ele e outros colegas estavam pescando e se surpreenderam com temporais que tornaram a volta para terra perigosa. "Quando cai o temporal, a onda é muito grande, então agora sabendo que pode chover a gente se previne e nem pega a canoa, por segurança", diz.
A estação meteorológica e hidrométrica recém-instalada envia os dados em tempo real para um aplicativo, que João Paulo acessa de seu celular e consegue se programar. Assim como ele, aproximadamente mais 50 famílias que vivem na comunidade poderão usufruir dessa tecnologia. "Facilita muito, porque nem sempre conseguíamos ter uma previsão específica aqui da nossa localidade, agora sabemos com muito mais certeza", afirma.
Expedições anteriores podem ajudar tomadas de decisão
Unindo as atividades de campo com a sistematização de conhecimento, o Harmonize também busca auxiliar as tomadas de decisão de gestores locais e lideranças comunitárias, dentre outros. Cruzando as informações já geradas nas expedições de 2022 e 2023, neste ano a equipe do projeto já apresentou aos atores locais um Policy Brief, um documento conciso que reúne informações para entender como as mudanças climáticas estão sendo sentidas no Baixo Tocantins e como esses efeitos na saúde estão sendo sentidos.
"É um documento político, uma demonstração do que a comunidade percebe como sendo as principais questões que preocupam e que demandam políticas públicas, então é um instrumento para ação", enfatiza Cláudia Codeço, integrante da equipe do projeto e coordenadora do Sistema Info Dengue do Programa de Computação Científica da Fiocruz (Procc/Fiocruz).
O material foi distribuído em reuniões e oficinas em Mocajuba e Cametá em setembro e traz recomendações de ações imediatas e propostas de políticas públicas para enfrentar os desafios atuais, como:
- Integração de sistemas de comunicação eficientes, como rádios ou telefones via satélite para resgate em situações críticas e eventos extremos.
- Criação de serviços adequados de coleta e descarte do lixo, que atendam às necessidades específicas das áreas rurais, urbanas e ribeirinhas.
- Implementação de sistemas de captação e tratamento de água do rio para a população ribeirinha, com a construção de reservatórios para uso da população.
- Construção de poços que atendam a critérios sanitários para a população urbana
- e expansão dos pontos de acesso à água (bicas) de qualidade.
- Criação de Secretaria de Meio Ambiente em Mocajuba.